O debate sobre o uso da lei mosaica no período apostólico é vasto, para não dizer infindável. Diferentes tradições possuem diferentes respostas, e não há consenso nem entre os da mesma tradição.
Esse breve artigo procura contribuir para uma pequena porção desse debate, tentando esclarecer o uso da lei na carta de Tiago, especificamente no cap. 2.11.
As conclusões apresentadas estão subordinadas a análise exegética do texto, evitando ao máximo (e de fato subordinando) as influências tradicionais, o que requererá imparcialidade exegética da parte do leitor, para uma melhor apreciação desse estudo.
No contexto imediato (2.1-13), Tiago trata sobre a acepção de pessoas. Para ele, tal discriminação era um mal hediondo. Alguns pensavam que, de modo geral, estavam sendo fiéis em outras áreas da vida e que, portanto, a discriminação não era tão grave assim. Para combater esse erro, Tiago se vale de um argumento que era um axioma judaico, a saber, a unidade da lei. Em outras palavras: “Pois qualquer que guarda toda a lei, mas tropeça em um só ponto, se torna culpado de todos” (Tg. 2.10)[1].
Tiago não supõe que alguém possa guardar toda a lei, exceto por um ponto. Ele utiliza um argumento lógico e hipotético, totalmente compreensível a seus leitores originais. Tiago cita mais dois mandamentos para corroborar seu argumento, demonstrando que existe apenas uma voz por traz de todos os mandamentos[2].
Em suma, violar uma pequena parte equivale a violar o todo, ir contra o próprio Deus.
Em ambas as versões do decálogo, encontramos as proibições contra o adultério e o assassinato (Ex. 20.13-14; Dt. 5.17-18).
Quanto ao significado dos mandamentos, ainda que “matar” (Hb. ratsah) às vezes apareça como “morte acidental” (p. ex. Nm. 35.11; Dt. 19.4; Js. 20.3) é evidente que esse não é o significado aqui. Esse assassinato é de um ser humano contra outro(s), mas nunca em contextos judiciais ou militares[3]. Nas palavras de McConville, “O mandamento corresponde a uma preocupação de promoção da vida e o bem-estar dos membros da comunidade da aliança, como suas ramificações no código (p. ex Dt. 22.1-4) deixam claro”[4].
Quanto ao adultério, faz parte de amplas estipulações que tratam das relações sexuais.
Posteriormente, no judaísmo, os dez mandamentos continuaram a ter importância central para os judeus (Filo atribui destaque às dez palavras (Decálogo 154) em uníssono com a tradição tanaítica).
Ao distinguir as leis, os judeus (assim como o próprio Jesus), faziam distinção entre mandamentos “leves” e “pesados”, e não entre “moral”, “cerimonial” e “civil”. Essa distinção passou a ter alguma importância nos meios cristãos a partir do período da patrística, mas teve função como explicação fundamental das continuidades e descontinuidades entre os testamentos somente em Tomás de Aquino[5].
Embora os judeus distinguissem entre mandamentos leves e pesados, insistiam que a quebra de ambas é igualmente grave (p. ex. 4Mc. 5.19-21; IQS VIII; T. Aser. 2.5-10).
O propósito de Tiago citar esses dois mandamentos é mostrar a unidade indivisível da lei[6]. Há somente um Legislador supremo por trás de todos e de cada mandamento, ao passo que violar qualquer um deles é rebeldemente desafiar sua autoridade e contraria sua vontade. É por esse motivo que toda a lei é transgredida pela quebra de qualquer parte dela, por menor que seja.
Martin sugere que Tiago tinha em mente uma aplicação literal de “não matarás”, argumentando a possibilidade de alguns judeus (leitores de Tiago) estarem envolvidos no conflito judaico que precedeu a rebelião contra Roma[7]. Entretanto, esse cenário é improvável, sendo mais plausível a referência de Tiago ao “não matarás” tendo o sentido “mais profundo” que Jesus deu no sermão do Monte, uma vez que essa passagem é bem conhecida por Tiago. Para não entrarmos no campo da especulação teológica, é mais seguro afirmarmos que Tiago citou esses dois mandamentos como exemplos representativos[8]. Ambos os mandamentos são da segunda tábua, o que na tradição cristã estão ligados ao mandamento do amor.
Alguns entendem que Tiago diria o mesmo de qualquer lei encontrada no AT, como as leis concernentes a alimentação, circuncisão, sacrifícios, etc. No entanto, como corretamente o Dr. Carson e Dr. Moo expressaram, Tiago não especifica cada estatuto da lei mosaica, mas sim a “lei real” (lei da liberdade), o que está em total acordo com a abordagem de Jesus, que por um lado podia expressar endosso irrestrito a lei (Mt. 5.18-19) e por outro insistia que era Ele mesmo quem a cumpria (Mt. 5.17), e nesse cumprimento escatológico, Jesus até trata desses dois mandamentos com reformulações significativas (Mt. 5.21-30). Assim também Tiago aplica esse padrão sobre a unidade da lei conforme reinterpretada por Jesus[9].
Seria proveitoso analisarmos questões mais complicadas sobre a continuidade e descontinuidade da lei entre os testamentos e sua aplicabilidade atual. Entretanto tal investigação ultrapassaria nossos limites. Concluo que Tiago aponta para a unidade indivisível da lei, e considerando o contexto, podemos sumariar dois argumentos: 1. Um argumento ad hominem, onde todas as pessoas reconhecem todos os crimes sob o título de “transgressão” (Gr. παραβάτης, cf. 2.9) e; 2. O Legislador expressa sua vontade em cada mandamento (notar o uso de εἰπών … εἶπεν καί, circunlocuções no estilo judaico para se evitar o nome de Deus onde a escolha do verbo aponta para a lei como um pronunciamento oral e pessoal dos mandamentos de Deus)[10]. A vontade de Deus é violada na quebra de qualquer mandamento. A lei é uma unidade porque o Legislador é um[11]. Essa passagem também pode esclarecer a natureza da idolatria, que consiste na rebelde transgressão da vontade Divina. Uma leitura progressiva intracanônica revela que esses dois mandamentos (não matar e não adulterar) estão intrinsecamente vinculados com a idolatria, que é o afastamento espiritual de Deus, que é a única fonte de vida. Assim como é impossível se afastar de apenas uma porção das bênçãos de Deus (sem se afastar de todas as bênçãos) assim é impossível quebrar apenas uma lei sem quebrar todas elas. Ao pecarmos, transgredimos a lei, nos declarando idólatras.
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[1] Cf. D. A. Carson, “Tiago”, em “O comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento”, orgs. D. A. Carson e G. K. Beale, p. 1227.
[2] Cf. L. T. Johnson, The letter of James. AB 37A, 1995, p. 232).
[3] Carson, p. 1228.
[4] J. G. McConville, “Deuteronomy”, 2002, p. 129.
[5] Carson, ibid.
[6] Ibid.
[7] Martin, R. P., James (Waco, Tex.: Word, 1988), p. 70.
[8] Moo, D. J. (2000). The letter of James (p. 115). Grand Rapids, MI; Leicester, England: Eerdmans; Apollos.
[9] Carson, p. 1229; Moo, p. 116.
[10] Davids, P. H. (1982). The Epistle of James: a commentary on the Greek text (p. 117). Grand Rapids, MI: Eerdmans.
[11] Ibid.
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