(Esse artigo é um capítulo do livro que estou escrevendo intitulado “Melquisedeque e a história da redenção” (possivelmente)).
Melquisedeque aparece em alguns textos encontrados entre os Manuscritos do Mar Morto, tanto em textos produzidos pela própria comunidade de Qunrã, como aqueles textos de literatura judaica do segundo templo que foram encontrados lá, um exemplo desses, é o livro de Gênesis Apócrifo que já fora analisado acima.
Nos textos da comunidade de Qunrã, Melquisedeque é apresentado como uma figura celestial, não mais como um mero sacerdote terrestre. Infelizmente, os textos analisados abaixo estão em um estado de preservação muito pobre. Apesar disso, conclusões podem ser tiradas sobre o significado de Melquisedeque na comunidade de Qunrã.
Iremos analisar três textos, sendo que os dois primeiros, devido aos seus problemas de preservação e também pela sua relevância inferior, será dado apenas um sumário sobre o significado de Melquisedeque nesses textos. Esses dois textos são: “Cânticos do sacrifício Sabático (TA); e visões de Anrão. Para uma analise mais completa desses dois textos, o leitor pode consultar a obra de Eric Mason, intitulada “You are a priest forever” – Second temple jewish messianism and the priestly Christology of the epistle to the hebrews (Tu és sacerdote para sempre – messianismo judaico do segundo templo e a cristologia sacerdotal na carta aos hebreus), pgs. 164-68.
Melquisedeque é mencionado nesse texto propositalmente. Esse texto é representado em Qunrã por alguns manuscritos da caverna 4 (4Q400-407), junto com 11Q17. Pelo menos em uma passagem, e possivelmente em mais, Melquisedeque é apresentado como um sacerdote angelical servindo na coorte do templo celestial de Deus. O contexto pode apresentar uma discussão sobre a guerra escatológica.
Outras passagens desse cântico podem identificar Melquisedeque como o cabeça de um sacerdócio angelical (com possíveis conotações do Salmo 110). Essa abordagem difere significativamente das outras abordagens na literatura do segundo templo que já analisamos, mas essa perspectiva é similar aos outros textos de Qunrã que iremos abordar .
Esse texto aramaico data do segundo século século a.C. e está preservados em 6 ou 7 manuscritos da caverna 4 (4Q543-549), e o mais significativo para nosso estudo é 4Q544 (4Q visões de Anrão). Esse texto é um testamento que reconta a visão de Anrão (pseudônimo), um dos netos de Levi.
Anrão sonha, e vê dois sentinelas lutando em cima dele, um era mal e o outro era bom, e pergunta o nome e os poderes de ambos. Apesar do nome de Melquisedeque não aparecer nos originais, a maioria dos estudiosos sugerem que é implicitamente mencionado nos textos de 4Q544 3 IV, 2-3 baseado no paralelo com 4Q544 2 III, 13.
4Q 544 2 III, 13
[E esses são seus três nomes: Belial, Príncipe das trevas] e Melquiresa. 4Q544 3 IV, 2-3 [Meus] três nomes [são: Miguel, Príncipe da luz, e Melquisedeque.] Se essas pesadas reconstruções estiverem corretas, Melquisedeque é identificado com o Arcanjo Miguel, príncipe da luz. Miguel frequentemente aparece nos textos de Qunrã como o oponente de Belial (o nome Melquiresa, em contraste, significa “Meu rei é ímpio) e é invocado na guerra entre os filhos da luz e os filhos das trevas em 1QM.
Aqui, Melquisedeque parece ser um oponente angelical de Belial em uma guerra escatológica a favor do povo de Deus. Essa parece ser sua função em 11QMelquisedeque, para o qual nossa atenção se direciona agora.
Esse manuscrito 11QMelquisedeque (11Q13) foi descoberto em 1956, e foi publicado primeiramente por Adam S. Van der Woude em 1965 .
Existem porções de pelo menos 3 colunas de texto, das quais apenas a coluna II está preservada substancialmente.
Apesar de sua condição fragmentária, esse texto tem chamado muito a atenção dos estudiosos, e alguns apontam alguma aplicabilidade para a interpretação de Hebreus, por apresentar Melquisedeque num contexto escatológico com temas sacerdotais, proféticos e de juízos .
Mas essas porções sobreviventes, bem como os outros Manuscritos do Mar Morto que (possivelmente) citam Melquisedeque, não são explicitamente guiados pelas passagens que o mencionam como Gn 14. 18-20 e Sl 110.4, passagens que são centrais na argumentação de Hebreus.
O autor de 11QMelquisedeque pode ter lido o Salmo 110 e entendido que Melquisedeque possuía um sacerdócio eterno, e que portanto era a figura entronizada a destra de Deus no verso 1, tendo domínio sobre seus inimigos (versos 1 e ), e trazendo julgamento nos versos 5 e 6.
Esse tema do julgamento pode ter impulsionado o autor a ler o salmo 82, com uma ênfase similar, também sobre Melquisedeque.
Nesse texto Melquisedeque pode estar identificado como uma figura messiânica, e seu sacerdócio está conectado com o Dia da Expiação escatológico.
Melquisedeque é apresentado como cumprindo funções que são consistentes com a figura messiânica, como por exemplo, seu papel no julgamento final, seu efetuar da expiação escatológica, a destruição dos exércitos de Belial na batalha escatológica, a restauração da paz, e a vinda da salvação para aqueles da sua “porção”.
Proporcionarei agora uma tradução adaptada de 24 versos desses fragmentos.
[ ] [
[ ] E para isso ele disse: [Nesse] ano de Jubileu, [cada um de vocês devem voltar para suas propriedades, e concernente a is]so ele disse:
cada credor remeterá o que ele emprestou [a seu vizinho. Não pressionará seu vizinho ou seu irmão, pois isso foi proclamado]
…de Deus [essa é a interpretação para os cativos dos últimos dias, quem [ ] e quais
os mestres tem sido escondidos e mantidos em segredo, e da herança de Melquisedeque, [ ] e eles são a her[ança de Melquisedeque]
farão eles retornar. E a liberdade será proclamada a eles. Para libertar eles da [dívida de] suas iniquidade. E isso [irá acontecer]
na primeira semana de jubileus [que ocorre] após [o] [nono] jubileu. E o Di[a da exp]iação é n[o] final do décimo [Ju]bileu.
e tal expiação será feita para todos os filhos da [luz e para] os homens que são a porção de Mel[qui]sedeque, [ ] sobre [el]ES [ ] de aco[rdo c]om tudo o que eles [fizeram]
É o tempo do ano da graça de Melquisedeque e [seu] exér[cito, a na]ção dos santos de Deus, da administração da justiça, como está escrito
sobre ele nos cânticos de Davi, que disse: “Elohim estará na assembleia de Deus, no meio dos deuses ele julgará”. E sobre ele disse:
das alturas retornará; Deus julgará as nações. E por isso ele disse: Até quando julgarás injustamente, e serás parcial com os ímpios. Selá.
A interpretação disso diz respeito a Belial e sua porção, [que] se [afastaram] dos mandamento de Deus para [cometerem o mal],
E Melquisedeque trará a vingança do julgamento de Deus, e [naquele dia] ele os [livrará das mãos] de Belial e das mãos de todos os e[spíritos da sua porção]
e todos os deuses (de justiça) o irão ajudar. E [ele] é [aquele] que todos os filhos de Deus [ ] , e ele será [ ]
Esse [ ] é o dia da [paz do] qual foi dito através [do profeta ]Isaías que disse: Quão formosos
são, sobre [os mon]tes, os pés do qu[e anuncia] as boas novas, que faz ouvir a paz, do que anuncia [o] bem, que faz ouvir a salvação, do que diz a Sião: O t[eu Deus rein]a!
Essa é a interpretação: os montes [são os] profetas. Eles [ ]
e os mensageiros é a unção do espír[ito], como Dani[el] disse sobre ele: Será ungido, o príncipe, em sete semanas. E os mensageiros do bem
Que [anuncia a salvação] é aquele de quem está escrito [
Para confortar os [aflitos, e a interpretação] é essa: instruí-los em todas as épocas desse m[undo
na verdade [ ]
se afastarem de Belial e reto[rnarem para ] [
[ ] no julgamento de Deus, como está escrito sobre ele: [Diga a Si]ão, teu Deus reina. Sião é
a congregação de todos os filhos da justiça, que estabeleceram a aliança, que evitaram andar no caminho dos povos, e o seu Deus é [ ]
[ Melquisedeque que irá livrar] eles [ das mãos de Belial], e para isso ele disse: Você irá tocar [a trombe]ta em todo o [ ]
Como fica evidente nessa tradução, esse texto é um midrash, ou talvez um pesher temático, provendo uma interpretação escatológica de várias passagens da Escritura . Claramente o autor engaja num estilo pesher de interpretação, mas a abordagem também tem uma natureza midrashica, como é mostrado no esboço a seguir:
Linha 2 Lv. 25.13 interpretado por Dt 15.2
Linhas 2-4 Dt 15.2
Linhas 4-9 pesher de Dt 15.2 (com Is 61.1)
Linha 10 Salmo 82.1, em conjunção com
Linhas 10-11 Salmo 7. 8-9 e
Linha 11 Salmo 82.2
Linhas 12-14 pesher dos salmos: 82.1; 7. 8-9; 82.2
(com Is 61.3)
Linhas 15-16 Is 52.7
Linhas 17-25 pesher de Is 52.7 incorporando Dn 9.25 e Lv 25.9 (com Is 61.2-3)
Melquisedeque aparece em 11QMelquisedeque como o portador do livramento e do julgamento de Deus. Livramento é o tema no começo e no final da coluna II. O autor entende a história como consistindo de dez unidades de jubileus finalizada com o escatológico Dia da Expiação (linha 7) .
Nas linhas 2-9, Melquisedeque age para livrar os “cativos” (linha 4), presumivelmente as mesmas pessoas que são “a herança de Melquisedeque” (linha 5). Ele proclama liberdade a eles e os liberta “da dívida de todas as suas iniquidade” (linha 6). Essa última frase possui conotações cúlticas e a próxima linha menciona o Dia da Expiação. Melquisedeque parece ser o agente dos pronunciamentos de Deus (linhas 3-4). Melquisedeque anuncia liberdade na primeira semana do décimo jubileu (linha 6), mas é incerto se a libertação de fato aconteceu naquele tempo ou se é um anunciamento proléptico da libertação que ocorre em conjunto com o escatológico Dia da Expiação no final do décimo jubileu .
O autor de 11QMelquisedeque o vê como o sumo sacerdote que conduz o sacrifício do Dia da Expiação escatológico.
O tema do julgamento é introduzido pela “administração da justiça”, na linha 9. Aqui a ênfase é clara e fortemente o julgamento Divino sobre os ímpios. Temos a impressão de que Melquisedeque é uma figura angelical na corte celestial que administra a justiça, junto com outros membros dessa corte (ver linha 14) contra Belial e aqueles que são a sua herança.
Livramento é enfatizado novamente nas linhas 15-25. O texto principal sob consideração é Isaías 52.7, onde o mensageiro anuncia paz e salvação e fala sobre o reinado de Deus em Sião.
O mensageiro é identificado com o príncipe ungido pelo espírito em Daniel 9.25 e alguns estudiosos o identificam com Melquisedeque.
Resumindo, 11QMelquisedeque apresenta Melquisedeque como uma figura celestial e escatológica no serviço de Deus. Ele irá livrar os justos de Deus e executar justiça contra Belial e seus seguidores. Melquisedeque também irá fazer expiação para aqueles que são a sua herança.