O debate sobre o uso da lei mosaica no período apostólico é vasto, para não dizer infindável. Diferentes tradições possuem diferentes respostas, e não há consenso nem entre os da mesma tradição.
Esse breve artigo procura contribuir para uma pequena porção desse debate, tentando esclarecer o uso da lei na carta de Tiago, especificamente no cap. 2.11.
As conclusões apresentadas estão subordinadas a análise exegética do texto, evitando ao máximo (e de fato subordinando) as influências tradicionais, o que requererá imparcialidade exegética da parte do leitor, para uma melhor apreciação desse estudo.
No contexto imediato (2.1-13), Tiago trata sobre a acepção de pessoas. Para ele, tal discriminação era um mal hediondo. Alguns pensavam que, de modo geral, estavam sendo fiéis em outras áreas da vida e que, portanto, a discriminação não era tão grave assim. Para combater esse erro, Tiago se vale de um argumento que era um axioma judaico, a saber, a unidade da lei. Em outras palavras: “Pois qualquer que guarda toda a lei, mas tropeça em um só ponto, se torna culpado de todos” (Tg. 2.10)[1].
Tiago não supõe que alguém possa guardar toda a lei, exceto por um ponto. Ele utiliza um argumento lógico e hipotético, totalmente compreensível a seus leitores originais. Tiago cita mais dois mandamentos para corroborar seu argumento, demonstrando que existe apenas uma voz por traz de todos os mandamentos[2].
Em suma, violar uma pequena parte equivale a violar o todo, ir contra o próprio Deus.
Em ambas as versões do decálogo, encontramos as proibições contra o adultério e o assassinato (Ex. 20.13-14; Dt. 5.17-18).
Quanto ao significado dos mandamentos, ainda que “matar” (Hb. ratsah) às vezes apareça como “morte acidental” (p. ex. Nm. 35.11; Dt. 19.4; Js. 20.3) é evidente que esse não é o significado aqui. Esse assassinato é de um ser humano contra outro(s), mas nunca em contextos judiciais ou militares[3]. Nas palavras de McConville, “O mandamento corresponde a uma preocupação de promoção da vida e o bem-estar dos membros da comunidade da aliança, como suas ramificações no código (p. ex Dt. 22.1-4) deixam claro”[4].
Quanto ao adultério, faz parte de amplas estipulações que tratam das relações sexuais.
Posteriormente, no judaísmo, os dez mandamentos continuaram a ter importância central para os judeus (Filo atribui destaque às dez palavras (Decálogo 154) em uníssono com a tradição tanaítica).
Ao distinguir as leis, os judeus (assim como o próprio Jesus), faziam distinção entre mandamentos “leves” e “pesados”, e não entre “moral”, “cerimonial” e “civil”. Essa distinção passou a ter alguma importância nos meios cristãos a partir do período da patrística, mas teve função como explicação fundamental das continuidades e descontinuidades entre os testamentos somente em Tomás de Aquino[5].
Embora os judeus distinguissem entre mandamentos leves e pesados, insistiam que a quebra de ambas é igualmente grave (p. ex. 4Mc. 5.19-21; IQS VIII; T. Aser. 2.5-10).
O propósito de Tiago citar esses dois mandamentos é mostrar a unidade indivisível da lei[6]. Há somente um Legislador supremo por trás de todos e de cada mandamento, ao passo que violar qualquer um deles é rebeldemente desafiar sua autoridade e contraria sua vontade. É por esse motivo que toda a lei é transgredida pela quebra de qualquer parte dela, por menor que seja.
Martin sugere que Tiago tinha em mente uma aplicação literal de “não matarás”, argumentando a possibilidade de alguns judeus (leitores de Tiago) estarem envolvidos no conflito judaico que precedeu a rebelião contra Roma[7]. Entretanto, esse cenário é improvável, sendo mais plausível a referência de Tiago ao “não matarás” tendo o sentido “mais profundo” que Jesus deu no sermão do Monte, uma vez que essa passagem é bem conhecida por Tiago. Para não entrarmos no campo da especulação teológica, é mais seguro afirmarmos que Tiago citou esses dois mandamentos como exemplos representativos[8]. Ambos os mandamentos são da segunda tábua, o que na tradição cristã estão ligados ao mandamento do amor.
Alguns entendem que Tiago diria o mesmo de qualquer lei encontrada no AT, como as leis concernentes a alimentação, circuncisão, sacrifícios, etc. No entanto, como corretamente o Dr. Carson e Dr. Moo expressaram, Tiago não especifica cada estatuto da lei mosaica, mas sim a “lei real” (lei da liberdade), o que está em total acordo com a abordagem de Jesus, que por um lado podia expressar endosso irrestrito a lei (Mt. 5.18-19) e por outro insistia que era Ele mesmo quem a cumpria (Mt. 5.17), e nesse cumprimento escatológico, Jesus até trata desses dois mandamentos com reformulações significativas (Mt. 5.21-30). Assim também Tiago aplica esse padrão sobre a unidade da lei conforme reinterpretada por Jesus[9].
Seria proveitoso analisarmos questões mais complicadas sobre a continuidade e descontinuidade da lei entre os testamentos e sua aplicabilidade atual. Entretanto tal investigação ultrapassaria nossos limites. Concluo que Tiago aponta para a unidade indivisível da lei, e considerando o contexto, podemos sumariar dois argumentos: 1. Um argumento ad hominem, onde todas as pessoas reconhecem todos os crimes sob o título de “transgressão” (Gr. παραβάτης, cf. 2.9) e; 2. O Legislador expressa sua vontade em cada mandamento (notar o uso de εἰπών … εἶπεν καί, circunlocuções no estilo judaico para se evitar o nome de Deus onde a escolha do verbo aponta para a lei como um pronunciamento oral e pessoal dos mandamentos de Deus)[10]. A vontade de Deus é violada na quebra de qualquer mandamento. A lei é uma unidade porque o Legislador é um[11]. Essa passagem também pode esclarecer a natureza da idolatria, que consiste na rebelde transgressão da vontade Divina. Uma leitura progressiva intracanônica revela que esses dois mandamentos (não matar e não adulterar) estão intrinsecamente vinculados com a idolatria, que é o afastamento espiritual de Deus, que é a única fonte de vida. Assim como é impossível se afastar de apenas uma porção das bênçãos de Deus (sem se afastar de todas as bênçãos) assim é impossível quebrar apenas uma lei sem quebrar todas elas. Ao pecarmos, transgredimos a lei, nos declarando idólatras.
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[1] Cf. D. A. Carson, “Tiago”, em “O comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento”, orgs. D. A. Carson e G. K. Beale, p. 1227.
[2] Cf. L. T. Johnson, The letter of James. AB 37A, 1995, p. 232).
[3] Carson, p. 1228.
[4] J. G. McConville, “Deuteronomy”, 2002, p. 129.
[5] Carson, ibid.
[6] Ibid.
[7] Martin, R. P., James (Waco, Tex.: Word, 1988), p. 70.
[8] Moo, D. J. (2000). The letter of James (p. 115). Grand Rapids, MI; Leicester, England: Eerdmans; Apollos.
[9] Carson, p. 1229; Moo, p. 116.
[10] Davids, P. H. (1982). The Epistle of James: a commentary on the Greek text (p. 117). Grand Rapids, MI: Eerdmans.
[11] Ibid.
“Texto fora de seu contexto é pretexto para heresia”! Essa frase, sem dúvida, é bastante conhecida. Entretanto a máxima hermenêutica “todo texto deve ser interpretado pelo seu contexto” é uma metodologia conhecida por muitos, porém praticada por poucos. Através desse breve artigo gostaria de incentivar os leitores a levarem as Escrituras mais a sério, realizando um trabalho mais duro, porém que nos proporciona melhores frutos. Devemos nos esforçar para compreendermos um livro Bíblico em sua totalidade, sua estrutura e seu propósito. Assim, ao nos aproximarmos do texto, teremos um entendimento mais rico, profundo e preciso, interpretando as partes à luz do todo e não vice-versa.
O livro analisado aqui será o Evangelho de João.
A primeira pergunta que deve ser levantada é: Qual é o propósito do evangelho de João? Por que João escreveu esse livro?
Diferente dos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), onde precisamos de uma análise mais aprofundada do texto para encontrarmos seu propósito, João expressa e claramente nos diz qual é a sua meta ao escrever esse evangelho. Encontramos isso em João 20.30-31:
“30 Jesus, na verdade, operou na presença de seus discípulos ainda muitos outros sinais que não estão escritos neste livro; 31 estes, porém, estão escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome.”
Mais claro e direto impossível. João escreve esse evangelho para que seus leitores (originais e todos quantos lerem posteriormente) creiam que Jesus é o Messias, profetizado e prometido no Antigo Testamento e que Ele é o próprio Filho de Deus. E não somente isso, mas crendo, seus leitores tenham vida através de Jesus. Essa é uma das características de João. Ele diz coisas extremamente profundas e chocantes, da forma mais clara e direta possível (p. ex., João escreve sem rodeios que Jesus é o próprio Deus).
Encontramos no Evangelho de João tanta harmonia e beleza, que sua estrutura é as vezes chamada de “estrutura sinfônica”, ou “melodia estrutural”. Em uma visão mais ampla, podemos dividir a macroestrutura desse evangelho em 4 partes:
I. Prólogo (1.1-18)
II. Livro dos Sinais (1.19-12.50)
III.Livro da Glória (13.1-20.31)
IV. Conclusão (21)
Como vimos acima, João escreve esses “sinais” com o alvo de seus leitores verdadeiramente crerem em Jesus como Cristo e Filho de Deus. João alcança seu propósito já nessa primeira seção (maior) do livro, conhecida didaticamente como o “livro dos sinais”.
O pano de fundo desses sinais está no Antigo Testamento. Temos (pelo menos) dois antecedentes importantes no AT para os sinais de Jesus: 1. Sinais e prodígios que Moisés realizou no êxodo; 2. Atos proféticos simbólicos que denotam juízo futuro (p. ex. Is 20.3). João retrata Jesus como o “novo Moisés” (ou Moisés escatológico), sendo ele (Jesus) o mediador supremo entre Deus e os homens, portador absoluto da revelação Divina (sendo Ele mesmo a palavra de Deus), e efetuador da salvação do povo de Deus (o novo êxodo). Aqueles que creem em Jesus são beneficiados com a eterna redenção. Entretanto, aqueles que rejeitam a Cristo (como os judeus nesse evangelho), encontram o juízo escatológico Divino em condenação (ambos os temas – condenação/redenção – inaugurados com a vinda e obra de Cristo).
Nesta seção do “Livro dos Sinais”, João escolhe a dedo sete sinais realizados por Jesus (número 7 como expressão de plenitude/perfeição na mentalidade judaica). Os sinais são:
1º Sinal: Transformação da água em vinho no casamento em Caná (2.1-11).
2º Sinal: Ato profético da purificação do templo (2.13-22).
3º Sinal: Cura a distancia do filho do oficial do rei (4.46-54).
Capítulos 5-10 são caracterizados pela controvérsia crescente entre Jesus e seus oponentes judeus.
4º Sinal: A cura de um homem aleijado havia 38 anos, e a controvérsia sobre o sábado (cap. 5).
5º Sinal: A multiplicação de pães para a multidão (cap. 6).
6º Sinal: A cura do cego de nascença (cap. 9).
7º Sinal: O ápice dos sinais – A ressurreição de Lázaro (seção de transição nos caps. 11-12).
11.Ressurreição de Lázaro (11.1-57)
12.A unção em Betânia (12.1-11)
13.Entrada triunfal de Jesus em Jerusalém (12.12-19)
14.A era dos gentios (12.20-36)
15.Os sinais do Messias e a rejeição por parte de Israel (12.37-50)
Nesta segunda seção maior desse evangelho (ou 3º na macroestrutura), é caracterizada pela exaltação/glorificação de Jesus em Sua morte e ressurreição. Entretanto, antes disso, Jesus prepara seus discípulos para as coisas que haveriam de acontecer, purificando-os e ensinando-os em Seu último discurso. A estrutura dessa seção é:
1. O discurso de Despedida (caps. 13-17).
1. Preâmbulo
A purificação da nova comunidade messiânica: Lavagem dos pés e a partida de Judas (13.1-30).
2. O discurso (13.31-16.33).
13.A partida de Jesus e o envio do Espírito (13.31-14.13).
14.Jesus, a videira verdadeira (15.1-17).
15.O Espírito e o testemunho dos discípulos no mundo (15.18-16.33).
3. Oração Final (cap. 17).
1. A narrativa da paixão
1. A traição e a captura de Jesus e seu julgamento judaico (18.1-27)
2. O julgamento romano de Jesus (18.28-19.16a).
3. A crucificação e o sepultamento de Jesus (19.16b-42).
4. A ressurreição de Jesus e o propósito do evangelho (20.1-31)
1. Jesus aparece a 7 discípulos (21.1-14)
2. Jesus e Pedro (21.15-19)
3. Jesus e seu discípulo amado (21.20-25)
Espero ter transmitido algum ensino a encorajamento na difícil tarefa de interpretar as Escrituras a você cristão, que ama a Palavra de Deus, e busca entende-la e vive-la para a Glória de Deus em Cristo.
Soli Deo Gloria
Parte 1: A evidência mais clara
G. K. Beale
Esse artigo argumenta que há algumas referencias no Antigo Testamento e no judaísmo sobre o templo (normalmente o celestial ou às vezes o templo dos últimos dias) tem sido formativo para a representação da aparição do Espírito como fogo e outros fatores associados em Atos 2. A conclusão é que a vinda do Espírito em Pentecostes é a descrição da inauguração da descida escatológica à terra do templo celestial para estabelecer o povo de Deus do fim dos tempos como parte desse templo.
Enquanto o evangelho narra algumas dimensões do estabelecimento de Jesus a si mesmo como o templo do fim dos tempos (e.g. João 2.19-22), e enquanto o Novo Testamento se refere à igreja como o “templo” dos últimos dias ou “templo do Espírito Santo” (e.g. 2Co 6.16), não há menção explícita do tempo decisivo de quando a igreja foi pela primeira vez fundada como o templo escatológico. Além do mais, o evangelho de Lucas (e de Mateus) narra um interesse aguçado no templo terrestre de Israel, ambos com respeito ao seu uso próprio e impróprio, e então prediz sua destruição. Em contraste com Mateus Marcos e João, que mencionam a substituição do templo de Israel por Cristo reconstruindo um novo templo através da sua ressurreição (Mt 26.61; Mc 14.58; Jo 2.19-22), Lucas nunca diz ao leitor quem ou o que substituirá o templo. O propósito desse artigo é explorar a possibilidade de que é em Atos 2 onde Lucas narra o estabelecimento inicial da igreja como o templo dos últimos dias, em substituição, ou melhor, como a continuação intensificada do verdadeiro templo de Deus. Em particular, nós iremos argumentar que o tabernacular celestial e a presença teofânica de Deus começaram a descer sobre seu povo no Pentecostes na forma do Espírito, estendendo o templo celestial para terra para incluir Seu povo nisso através de sua edificação. Isso será demonstrado através da analise de várias alusões do Antigo Testamento e do judaísmo, e o pano de fundo, no qual os contextos originais estão integralmente conectados com o templo. Algumas dessas alusões e panos de fundo possuem mais validade que outros, mas a esperança é que ao citar um a argumento cumulativo que carrega um grau suficiente de persuasão possa embasar a proposta. Ainda que as palavras “templo”, “santuário”, ou sinônimos não apareçam em Atos 2, a argumentação desse artigo é que o conceito da descida do templo celestial é tecido ao longo da narrativa e forma parte de seu significado subjacente.
Alguns comentaristas tem entendido que a impetuosa vinda do Espírito é uma teofania, mas ninguém, até onde tenho visto, sugeriu que o templo escatológico está em mente em Atos 2. Eu estou propondo que Atos 2 representa não uma mera teofania, mas a teofania de um recém inaugurado templo escatológico, aonde o templo celestial está sendo estendido à terra de uma maneira muito maior do que tinha sido para o Santo dos santos no templo Israelita. É verdade que a presença teofânica pode ser percebida no Antigo Testamento operando em conexão não com o templo celestial ou terreno. No entanto, frequentemente o Antigo Testamento representa teofanias ou no templo celestial ou no terreno, e esse era o lugar onde a presença Divina era considerada como sempre estando lá, até a destruição do templo de Salomão. De fato, a presença teofânica era a essência e o centro do tabernáculo e do templo de Israel.
A proposta de Atos 2 não é uma mera teofania, mas é um no contexto do novo templo mantendo as típicas teofanias-templárias do Antigo Testamento, que no Pentecostes começou a acontecer em um nível escatológico intensificado. O fato de que vários textos do Antigo Testamento profetiza que a presença teofânica do fim dos tempos será revelada no povo de Deus em um templo novo, expandido e não arquitetural, melhora nossa visão de que é isso que Atos 2 retrata como tendo seu inicio (Ver Is 4.2-6; 30.27-30; Jr 3.16-17; Zc 1.16-..13; Cf. Ez 40-46 e Or. Sib 5.414-432).
Ainda que haja muitos debates, muitos acreditam que as línguas de Pentecostes são melhores vistas, pelo menos em algum grau, contra o pano de fundo da Torre de Babel. O pecado de unificação em Babel e o consequente julgamento da confusão das línguas e as pessoas sendo dispersas na terra é revertido no Pentecostes. Deus fez representantes dessas nações dispersas se unirem em Jerusalém para que eles recebessem a benção de entenderem linguagens diferentes, como se todas essas línguas fossem uma, e o resultado foi que todos ouviram a mesma mensagem.
Os estudiosos do Antigo Oriente Médio mostraram que o julgamento ocorrido em Babel como resultado da união das pessoas para construírem uma Torre-Templo para forçar Deus a vir do céu e os abençoar. Tais Torres cúlticas eram típicas do tempo da antiga Mesopotâmia. O propósito disso era servir como um portal entre o céu e a terra por onde deus poderia vir e até mesmo “refrescar-se” nesse templo terrestre.
Mesmo que muitos duvidem de qualquer traço do pano de fundo de Babel em Atos 2, nós pensamos que as evidências acumulativas aponta para a presença de alguma extensão disso.
Os limites desse artigo não permitem uma completa apresentação dessas evidências acumulativas. No entanto, nós queremos notar o significado do pano de fundo do templo de Babel para Atos 2 aparentemente não tem sido previamente considerado. Nessa consideração, tudo o que queremos indicar através dessa seção introdutória de Babel é que parte dessa importância cúltica pode ser colocada em contraste com o novo templo que emerge junto com o fenômeno das línguas, que agora tem sido transformado em bênçãos. É para essa evidência em Atos 2 para tal novo templo que nós colocamos nossa atenção agora.
Primeiro, nós iremos fazer uma tentativa de estabelecer o pano de fundo do Sinai (que é significativamente um sumário do trabalho de outros), e então nós iremos nos esforçar para mostrar como isso se relaciona com a noção do novo templo.
A aparição das “línguas como de fogo” é uma expressão da vinda do Espírito que reflete uma teofania. Mas nós podemos dizer mais: Isso parece ser uma teofania associada com a descida da presença Divina do templo celestial. Várias considerações apontam para isso.
Primeiro, a menção de que “veio do céu um som, como de um vento impetuoso” e que apareceram “línguas como de fogo” trás a mente as típicas teofanias do AT. Deus aparecia nessas teofanias com sons trovejantes e em forma de fogo. A primeira grande teofania do AT foi no Sinai, onde “Deus desceu em fogo” e apareceu no meio de “trovões e relâmpagos e uma espessa nuvem” e “fogo” (e.g. Ex 19.16-20; 20.18; Pseudo-Filo Bib. Ant. 11.5 adiciona que no Sinai “ventos … e rugidos” e Filo, Decálogo 44, disse que houve um “lançar de chamas do céu” que é comparável com Ato 2.2, na imagem do “som como de um vento impetuoso”; Josefo, Ant. 3.80, diz que havia “estrondosos ventos … e relâmpagos”). O Sinai foi a teofania modelo para quase todas as aparições Divinas no AT, e em algum grau, a vinda de Deus no Sinai é o pano de fundo para a vinda do Espírito no Pentecostes.
O retrato da teofania no Sinai inclui a referencia a “todo o povo” que “viu as vozes e as tochas (ou Lâmpadas: a LXX trás lampás) , e a voz da trombeta (que é uma tradução direta de Ex 20.18 do MT [LXX trás no singular “voz”] ver também Dt 4.12, 36. 5.22). Dt 33.2 se refere a Deus como “vindo do Sinai” e que “a sua direita havia para eles o fogo da lei” que é equiparado com “Suas palavras” que Israel “recebeu” (Dt 33.3). A frase ωσει πυρος em Atos 2.3 pode ter sido parcialmente influenciada por Ex 24.17: “O aspecto da glória do SENHOR era como um fogo consumidor (ὡσεὶ πῦρ φλέγον) no cimo do monte” (Similar também em 19.18).
Especialmente esse aspecto do Sinai representa e como ele é desenvolvido no Judaísmo, é similar ao de Pentecostes, onde as pessoas viram “línguas de fogo endo distribuídas” (At 2.3). A esse respeito, a descrição de Filo no primeiro século sobre a aparição de Deus no Sinai não pode ser um paralelo casual: A revelação de Deus veio “do meio do fogo que fluía do céu” como uma “voz” (fonê), sendo como uma chama (pyr e flóx) que “se tornou um dialeto [dialekto] na linguagem familiar da audiência”, que causou “espanto” (Decálogo 46, um paralelo notado por vários comentaristas: note At 2.3 e 2.6). Em adição, Filo disse em outro lugar que Deus fez um “som invisível” para ter “uma forma” e para se tornar um “fogo flamejante [pyr] que parecia como um sopro [pneuma] através da trombeta de voz articular tão alta que pareceu igualmente audível para os que estavam mais longe bem como para com os que estavam mais perto” e a “nova voz miraculosa foi posta em ação e se inflamou [exopurei] pelo poder de Deus que fumegava [epipneousa] (Decálogo 35). A representação de Filo não irá remover a mencionada ocorrência em Êxodo, onde “vozes” estão vinculadas com as tochas de fogo: Todo o povo viu as vozes e as tochas (Ex 20.18; a LXX trás “todo o povo viu a voz e as tochas”, que é a citação de Filo). Em outro lugar, filo descreve a “voz” de Deus no Sinai (novamente citabdo a LXX de Ex 20.18) como “luz” e estava “brilhando com um brilho intenso” (Migração de Abraão 47). Até mesmo aqueles que “habitavam nos confins da terra [èscatiais] ouviram o som da trombeta no Sinai, que era designada para eles concluírem que “tais poderosos sinais pressagiavam poderosas consequências [taà oútos megala megalon apotelesmaton èsti semeia]” (Filo, Leis especiais 2.189). Seções do Judaísmo também falam da revelação de Deus no Sinai como sendo “em língua sagrada” (b. Sotah 42a de Ex 19.19), sendo “dada em fogo”, e como estando “profetizando” (Midr. Tanhuma Gn 8.23; Midr. Rab. Ex 28.6; Targ Sl. 68.34).
De fato, enquanto alguém poderia pensar que a descrição de Lucas no Pentecostes poderia conter nenhuma referência direta da teofania do Sinai, a pesquise a seguir mostra vários tipos de ligações e muito mais “alusões indiretas” do que nós temos mostrado acima para mostrar que Lucas estava consciente do pano de fundo do Sinai em suas representações do Pentecostes.
1. A computação essênica e farisaica da festa do Pentecostes coincidem com a data que alguns acreditam que Ex 19.1 dá para o tempo dos eventos no Sinai. A tradição do judaísmo do segundo século D.C. (Jubileus e DSS) revela que a festa das semanas (Pentecoste) era, não apenas uma celebração dos frutos da colheita, mas também era inextricavelmente vinculado a revelação no Sinai, particularmente o estabelecimento da aliança entre Israel e Deus (Pentecostes era para ocorrer 50 dias depois da celebração da Páscoa). A esse respeito, a festa das semanas era uma data para marcar e relembrar a aliança bíblia e para a renovação da aliança sinaítica. Jubileus 6.17 (2º séc. D.C.) diz que Israel deveria “observar a festa do Shebuot … uma vez por ano, para renovar a aliança em todos (os aspectos), ano por ano”. Pentecoste como uma festa da renovação da aliança, pode ser plausivelmente traçada toda uma linha para trás, pelo menos até 2 Crônicas 15.10-14. AQ tradição do Judaísmo posterior faz de Ex 19 a leitura lecionaria para a celebração do Pentecostes (b. Meg. 31a).
2. Há uma unanimidade de espírito pelo povo no mesmo espaço sagrado (Cf. Ex 19.8; Targ. PS-J, Ex 19.2; Mekilta Ex 19.2,8; 20.2 com At 1.14; 2.1-2).
3. Em adição aos paralelos verbais entre o fenômeno teofânico já citado, podemos observar mais coisas (Cf. os retratos dos eventos no Sinais onde não apenas fone [como notado acima] mas também êchos em Filo (Decálogo 33) e Hebreus 12.18-19, e da mesma forma ver At 2. 2, 6; phonê é usado repetitivamente em Ex 19.16-20.18 e em 19.16 phonê ocorre junto com a forma verbal de echos [echeo: MS. 59 se lê a forma substantiva echoi; note o uso de ginomai + phonê em Ex 19.16, 19, e At 2.6).
4. O som que veio do céu (εκ του ουρανου. Cf. Ex 20.22; Dt 4.36 e At 2.2):
5. A tradição exegética judaica em Ex 19 mantinha que a flamejante voz ou língua era “dividida” em suas aplicações às pessoas de todas as noções que ouviam isso mas rejeitavam e foram julgadas, e frequentemente a voz de Deus como de fogo é dita ser dividida para 70 línguas ou idiomas (cf. tradição exegética judaica em Ex 19 com At 2.3). A tradição judaica e o fenômeno comparável em At 2, ambos voltam a algum nível para a antiga interpretação do antigo judaísmo do segundo templo de passagens do AT, especialmente Ex 20.18a pertencente a revelação da lei no Sinai. O repetido comentário de que a revelação do Sinai era dividida para “70 idiomas” se identifica com a divisão da única linguagem da humanidade em 70 linguagens em Babel, talvez implicando que os comentaristas judeus viam o Sinai como a continuação do julgamento sobre as nações. Isso lembra a menção as “línguas sendo divididas” (At 2.3), ecoando a maneira tradicional de se referir as nações dispersas de Babel como as nações estando divididas.
6. Consequentemente, a ascensão de Jesus diretamente precedendo a revelação no Pentecostes, é paralela com a ascensão de Moisés diretamente precedendo a entrega da Lei no Sinai. Em particular:
(a) O ministério pós ressurreição de Jesus ocorreu em um período de 40 dias (At 1.3), que relembra as duas vezes que Moisés ficou no topo do monte Sinai.
(b) A ascensão ocorreu numa montanha (At 1.11-12; Cf. Lc 24.50), e uma nuvem encobriu a Jesus da vista dos seus discípulos (At 1.9), ecoando a entrada de Moisés na nuvem do Monte Sinai, enquanto ele estava subindo (Ex 24.15-18; Cf também a nuvem ao redor de Yahweh no Monte Sinai [Ex 19.16]). É dito também que a nuvem no inai estava descendo na montanha (Ex 19.11; 16.20). O que é chocante nessa última observação é que outros lugares do AT identificam o Espírito de Deus como a nuvem de fogo que desceu no Sinai (mais explicitamente, ver Ne 9.12-13 e Cf. Ne 9. 19-20, bem como Nm 19.24-30, que é o desenvolvimento do que ocorreu no Sinai em Ex 24, ver abaixo a discussão do uso de Nm 11 em At 2).
(c) A última parte de Atos 1 é sobre restaurar o número de apóstolos para doze, assim como as doze tribos estavam presente na aliança (Ex 24. 1-8).
(d) O uso que Lucas faz de Moisés como um tipo de Jesus em outros lugares indica que a referência a teofania do Sinai em Atos 2 não deveria ser surpresa (Cf. At 3. 23-24; 7. 20-41; Cf. Lc 24.27). Surpreendentemente impressionante é a descrição correspondente de Moisés que “recebeu palavras vivas para nos falar” (At 7.38) com Jesus que “tendo recebido o Espírito Santo, derramou isso que agora vedes e ouvis” (2.33).
Todos esses paralelos sugerem que Lucas tinha intenção em algum grau que seus leitores tivessem em mente a revelação de Deus para Moisés no Sinai como um pano de fundo para entender os eventos que conduziram a e levou ao clímax no Pentecostes.
Nós temos aduzido várias linhas de evidência em favor da identificação Sinai-Pentecostes. Alguns argumentos em favor dessa interpretação podem não se sustentar por si mesmos, mas eles somam mais uma força persuasiva quando vistos à luz de outras linhas de evidências. Ainda que alguns estudiosos tenham questionado se há qualquer presença do pano de fundo do Sinai, o peso total das evidências acumulativas aponta para a probabilidade disso. De fato, como Wedderburn concluiu, “é difícil manter que todos esses paralelos são puramente coincidências – isso certamente força muito a credulidade…”.
O desfecho de todas essas afinidades com a revelação do Sinai é para comparar com uma observação feita há não muito tempo: Eu tenho argumentado em outro lugar que Ex 19 e 24 retratam o Sinai como um templo “ou tabernáculo”, no qual a presença revelatória de Deus habita, uma observação que é feita por vários comentaristas do Antigo Testamento (para um sumário ver o excursus abaixo). Se essa conclusão está correta, ela contribui para as outras evidências através dessa questão de que a teofania do Pentecostes também pode ser entendida como o irromper de um novo templo. Em apoio a essa tese está o previamente não observado paralelo em Filo (comentando Ex 24.1b), onde é dito para Moisés “entrar na nuvem escura (Sinai) e para habitar pátio de entrada do palácio/templo do Pai”, onde a aparição de Deus é referida como “as línguas de fogo” (essa última frase é a paráfrase de Loeb de um armênio mais literal “faíscas de raio; Quest. Ex. 2.28); algumas seções depois (Quest. Ex. 2.33), Filo interpreta o sacrifício feito por Moisés em Ex 24.6 como sendo não apenas uma “oferenda santa” mas também uma “unção sagrada” [Chrisma] … para que (os homens [incluindo Israel no Sinai]) pudessem ser inspirados para receber o espírito santo [to agion pneuma].” (com o qual Cf. At 2.3, 38b respectivamente, “apareceram entre eles línguas como de fogo” e “receberá o dom do Espírito Santo”). O mais antigo (160 AC) e mai claro exemplo no judaísmo em relação a identificação do Sinai como um santuário está em Jubileus 8.19: “E ele (Noé) sabia que o jardim do Éden era o santo dos santos e o lugar da habitação do Senhor. E o Monte Sinai o era no meio do deserto e o Monte Sinai o era no meio do ponto central da terra. Esses três foram criados como lugares santos, um olhando para o outro”.
O Sinai é o único pano de fundo que retrata a imagem de fala em meio ao fogo. A frase atual “línguas como de fogo” ocorre em duas passagens do AT. Isaías 30. 27-30 se refere a Deus da seguinte maneira: “Descendo” aparentemente do seu templo celestial, que é localizado distante (“um lugar remoto” e “a montanha do Senhor”), aparecendo em “espessas nuvens … Sua língua é como fogo devorador [Theodoto lê o MT aqui como ho glossa autos os pur esqion], e Seu fôlego [Espírito] como torrente que transborda … no meio de chamas devoradoras; e “O Senhor fará ouvir sua voz majestosa”. “O nome do Senhor” (30.27) em outros lugares se refere a presença de Deus localizada distante “acima de todas as nações … acima dos céus”; “Monte Sião” (cf. 30.29) era entendida como estando “ao norte” (Sl 48.2), e o trono de Deus era visto como estando acima nos céus (Sl 113. 4-6; cf. Is 14.13). E também a presença de Deus no Seu templo celestial é vista como estando em um lugar muito elevado, geograficamente separada e muito distante da terra (Dt 26.15; Sl 18.6-13; 102.9; Is 57.15-16 [LXX]; 63.15 e 64.1; Jr 25.30; Mq 1. 2-3; implicitamente cf. Sl 80.1, 14; 92.8; 97.9; 113.4-6; 123.1).
Isaías 30.27-30 claramente alude a teofania prototípica do Sinai. A teofania é diretamente associada com a “montanha do Senhor” (30.29). Isso é significante porque em outros lugares em Isaias se refere ao templo escatológico (Is 2.3; “Vinde, e subamos ao monte do SENHOR e à casa do Deus de Jacó”; cf. Is 2.2 “o monte da casa do Senhor”; similarmente “11.9; 27.13; 56.7; 57.7, 13; 65.11). Frequentemente a frase “O nome do Senhor”, que aparece em 30.27, ocorre através do AT ligando a presença de Deus ao templo (aprox.. 30x de aprox.. 85x; e.g. 1Re 8.20, Salomão “edificou a casa para o nome do Senhor, o Deus de Israel”. Isaias em particular usa essa frase sete vezes fora 30.27, das quais quatro estão relacionadas com a glória ou a presença de Deus no templo (ou “Monte Sião”; 18.7; 24.15 [cf. 24.23]; 56.6-7; 60.7-9; as duas últimas possuem vínculos únicos com 30.27, por causa da linguagem comum sobre a mudança da luminescência do “sol” e da “lua” em relação a glória Divina: cf. 30.26-27 com 24.15, 23 e 60.7-9, 19-20).
A referência a respiração do Senhor em 30.28 pode ser meramente um antropomorfismo para a palavra de Deus em paralelo com as partes do corpo como lábios e língua no verso 27c-d, ou poderia ser um paralelismo com “o nome do Senhor” no verso 27a. Se for esse último, seria melhor compreendida como “Espírito”. A LXX de Is 30.27-28 interpreta a aparente referencia a respiração de Deus no MT, como sendo o Espírito de Deus ou isso está em linha com a referência original ao “Espírito” no MT, desde que também se interprete a referencia no MT a “lábios” e “língua” no verso 27 como a palavra de Deus: “e seu Espírito como a torrente de água no vale, irá vir até o pescoço, para confundir as nações com terror…” que o Espírito de Deus está em mente aqui é apontado pela observação posterior que quando pneuma é vinculado com água em outros lugares do AT, se refere exclusivamente ao Espírito de deus fazendo sua obra escatológica (Is 4.4; 44.3; Ez 36.25-27; cf. Is 32.15; Ez 39.29; Jl 2.23 e 2.28; Zc 12.10; incluído aqui também deveria estar Is 59. 19-21 e talvez Is 11.15).
Da mesma maneira as “línguas de fogo” ocorre como um emblema de julgamento em Is 5. 24-25 e pode ser uma cena abreviada do julgamento teofânico que vem do templo celestial como Isaias 30, desde que faça alusão a teofania do Sinai (e.g. cf. “as montanhas tremem” em 5.25).
As “línguas como fogo consumidor” em ambos os textos de Isaias conotam o julgamento de Deus e pode ser diferente da mesma imagem em At 2 (línguas como de fogo), parece ser um sinal apena de benção. Essa mesma imagem flamejante em Atos, no entanto, pode aludir tanto a benção como maldição considerando o pano de fundo do Sinai, onde a teofania flamejante era associada com benção (a entrega da lei) e julgamento (para aqueles que se aproximassem da teofania ou se rebelassem; cf. Ex 19. 12-24; 35.25-29). Nós vamos ver abaixo que o pano de fundo de Joel 2 citado em At 2 confirma o duplo tema de benção-maldição.
Consequentemente, o vinculo que Isaias faz de “línguas de fogo”, Seu “Espírito” e a “palavra” com a presença teofânica de Deus descendo do templo celestial (Is 30), tudo isso contra o pano de fundo do Sinai, tem impressionantes afinidades com Atos 2 e aponta para o mesmo vinculo de Atos 2.
Sobre essas representações da voz como de fogo de Deus, Is 66.15 é especialmente apropriado e pode formar parte do pano de fundo de Atos 2. 2-3. A passagem retrata: Porque eis que o SENHOR virá em fogo, e os seus carros, como um torvelinho, para tornar a sua ira em furor e a sua repreensão, em chamas de fogo. A semelhança para a relevância em At 2 está nas observações adicionais que segue o contexto: 1. Como resultado da ação de is 66.15, Deus irá “ajuntar todas as nações e línguas, e eles virão e verão minha glória (66.18); 2. A descrição dessas nações é expressada através da lista abreviada das 70 nações de Gn 10-11, que alguns argumentam que está refletida no próprio At 2; 3. Também é digno de nota que Deus “toma sua ira em furor e a sua repreensão, em chamas de fogo” em 66.15 tem sua fonte no templo (celestial?): “Voz de grande tumulto virá da cidade, voz do templo, voz do SENHOR, que dá o pago aos seus inimigos… (66.6 que presumivelmente continua a descrição da habitação de Deus de 66.1). Em adição, a passagem conclui com a nações sendo feitas sacerdotes e sendo trazidas para o templo escatológico (“a casa do Senhor”) junto com o retorno dos israelitas (66.20-21, que é a continuação do mesmo tema multifacetado de 56.3-8), que “irá declarar minha glória” ali (cf. At 2.11).
Existem representações comparáveis em outros lugares do AT acerca da palavra de Deus sendo “fogo” (Jr 5.14; 23.29; cf. l 119.105). Particularmente relevante é a palavra de Deus a Jeremias (Jr 5.14 “Eis que converterei em fogo as minhas palavras na tua boca”.). Em adição, as palavras flamejantes de Deus vêm do templo celestial Sl 18.13 “O altíssimo levantou sua voz / e houve granizo e brasas de fogo” (cf. também Sl 18.12; 2Sm 22.13-14) que tem sua origem “do seu templo” (18.6); Sl 29.7 “a voz do Senhor despede chamas de fogo” que emana do contexto do “Seu templo” (Sl 29.9).
Existem alguns antigos escritos judaicos que poderiam mostrar alguma consciência de ou ser inspirado pelas imagens do Antigo Testamento de línguas de fogo sendo associado com a teofania Divina no templo celestial ou terreno. A frase línguas de fogo também ocorre nessas passagens judaicas. Talvez o paralelo para as línguas flamejantes de At 2.3 seja 1 Enoque 14. 8-25. De fato o grego glossais pyros (línguas de fogo) de 1 Enoque 14.9 e 15 (bem como o quase idêntico em 14.10), é virtualmente o mesmo de glossai osei pyros (línguas como de fogo) em At 2.3. Lá Enoque ascende em visão ao templo celestial. Aparentemente o reflexo de ou o modelo para o templo terreno tripartido de Israel. Enoque veio para a parede da corte exterior que era “cercado por línguas de fogo” e ele “entrou nas línguas de fogo” (14.9-10). Ele então entrou através do lugar Santo e foi capacitado para entrar no Santo dos Santos, que era construído com “línguas de fogo”. Igualmente em 1 En. 71.5 Enoque vê um templo que tinha “a estrutura feita de cristais; e entre aqueles cristais havia línguas de fogo vivas”.
Assim, as línguas de fogo em 1 Enoque 14 e 71 formam parte do templo celestial e contribuem para o efeito geral da teofania flamejante no santo dos santos, onde “um fogo ardente estava ao redor dele, e um grande fogo permanecia a sua frente” (14.22). Na “estrutura construída com cristãos” (71.5) os santos, juntos com o “Filho do Homem” (71.17) teriam seus “lugares de habitação” (71.16), uma referencia no plural é encontrada em outro lugar para anjos “habitando” em pequenos “templos” no templo celestial maior (Ap. de Sof. A) e tipicamente usado no templo terrestre do AT ( com seus múltiplos precinto sagrados e seções [e.g. no que diz respeito ao tabernáculo cf. Lv 21.23; e com referência ao templo cf. Sl 43.3; 46.4; 84.1-4; 123.5, 7; Ez 7.24; Jr 51.51]).
Além do mais, quando Enoque ascende ao santuário celestial em 1 En. 71. “ele clamou em alta voz pelo Espírito de poder, benção, glorificação e exaltação” (1En 71.11), o que de novo coloca a obra do Espírito no contexto do templo celestial construído com línguas de fogo e está relacionado com realidades escatológicas (71.15-17).
O que poderia tal cena celestial ter haver com a cena terrena do Pentecostes representada em At 2? É possível que as palavras “línguas de fogo” em 1En seja um mero coincidente paralelo com At 2. Por outro lado, o uso contextual das palavras pode ter alguma sobreposição com seu uso da mesma frase em At 2. A passagem de Enoque possivelmente é um desenvolvimento criativo dos textos acima de Êxodo e Isaias, bem como especialmente de Ez 1, e esses textos são desenvolvimentos da imagem da teofania no Sinai. Por exemplo, a referencia em 1En 14. 18 de que um “elevado trono apareceu … de cristal e suas rodas como o brilho do sol, e (eu ouvi?) a voz do querubim”, é claramente a versão condensada de Ez 1. 21-26.
Similarmente, comentaristas reconhecem que 1En 71.1-17 foi tecido com referencias veterotestamentárias de Ez 1 e Dn 7, e da mesma maneira a passagem de 1En. 14.8-15.2.
À luz desses textos de Enoque, poderia ser que a descida do Espírito Santo em Pentecostes do “céu” na forma das “línguas de fogo”, era pra ser concebida com o inicio da descida do templo celestial de Deus na forma da sua presença tabernaculando entre nós? Desde que Seu templo celestial é figurado em Enoque como sendo em parte construído com línguas de fogo, e poderia ser apropriado que a descida do templo poderia ser figurada d mesma maneira. Assim, pode ser perceptível que, assim como o templo celestial era composto de línguas de fogo, no qual o Espírito de Deus era ativo, o novo templo da terra (o povo de Deus vivificado pelo Espírito) que desceu do céu, começou a ser construído com a mesma imagem flamejante. Essa sugestão pode ganhar mais força quando vista à luz de outras observações ao longo dessa seção, que aponta para diferentes ângulos do Pentecostes como um fenômeno expressando a presença teofânica divina no templo, frequentemente contra o pano de fundo da teofania do Sinai.
Dois textos, ambos em apocalipse, pintam uma figura similar ao Pentecostes, ainda que eles não contem a frase “línguas de fogo”. Apocalipse 4.5 descreve “sete tochas de fogo que ardiam diante do trono”, que são interpretados como os sete espíritos de Deus (i.e. o Espírito de Deus). Essa visão ocorre dentro de uma cena geral do templo celestial onde Deus se assenta no seu trono. As próprias tochas de fogo são concebidas como queimando os candeeiros do templo que apocalipse já identificou como sendo a igreja. Essa é provavelmente a maneira de João retratar a realidade do Pentecostes: o Espírito divino do templo celestial desceu e pousou sobre o povo de Deus que se tornou parte do templo celestial na terra, i.e., os candeeiros. Apocalipse 11.3-5 diz que o propósito da igreja como candeeiros na terra é para que eles “fiquem diante do Senhor da terra” e sejam “testemunhas” que irão “profetizar” para as “nações” (cf. 10.11; 11.9) e sua locução profética é retratada como “fogo que saia de suas bocas”!
Isso é surpreendentemente próximo a Atos 2, onde o Espírito do templo celestial desce em fogo e pousa sobre o povo de Deus para capacitá-los a testemunhar (At 1.8; 2.40) e profetizar (At 2.17-18) para as nações (At 1.8; 2.8-11).
Da mesma maneira no judaísmo a voz de Deus no templo celestial ou no tabernáculo ou templo terreno é virtualmente identificado com fogo. O judaísmo posterior expressa a expectativa de que cinco coisas seriam restaurada quando o templo e o lugar Santo fossem reconstruídos: a arca ,o candelabro, o fogo, o Espírito Santo e o querubim (Midr. Rab. Nm. 15.10). Enquanto isso é uma esperança para o templo físico do fim dos tempos, o fogo e o Espírito Santo em At 2 poderia ser visto como expressando a inauguração do templo escatológico descendo na forma da presença de Deus.
Nessa conexão, a Sabedoria de Ben Siraque sumariza a carreira de Elias com uma semelhança surpreendente com a carreira dos “dois profetas-candelabros” de Ap. 11.3-4 que despejam chama e “fecham os céus”: “Então Elias o profeta se levantou como fogo, e suas palavras queimavam como lâmpadas, ele calou o céu” (48.1,3), que é relacionada poucas linhas depois (48.7) com sua experiência profética no Sinai, que também é um pano de fundo relevante para Atos 2 (ele “ouviu a repreensão do Senhor no Sinai, o julgamento de vingança). Também tem uma proximidade similar a (e possivelmente formativo para) Atos 2.2-4 (como um vento impetuoso e veemente… todos ele ficaram cheios do Espírito Santo). Então Siraque narra que o manto profético de Elias fora passado para Eliseu: “Eliseu foi coberto com um redemoinho de vento, e foi cheio com Seu [Santo] Espírito” (48.12).
Pedro explica o episódio teofânico das línguas em At 2.1-12 como sendo o cumprimento inicial da profecia de Joel de que Deus iria “derramar” seu “espírito sobre toda carne”, e todas as classes de pessoas na comunidade da aliança iria “profetizar” (Jl 2.28-29). No inicio da citação de Joel 2.28, Pedro substitui a frase “nos últimos dias” no lugar de “depois dessas coisas” de Joel. A substituição vem de Isaias 2.2 (o único lugar na LXX que essa frase precisamente ocorre): “Nos últimos dias / o monte da casa do Senhor / será estabelecida como o principal dos montes / e será elevada sobre os outeiros / e para ele afluirão todos os povos”. Então, Pedro parece interpretar a vinda do Espírito como o cumprimento de Joel junto com o inicio do cumprimento da profecia de Isaías sobre o templo do fim dos tempos, sobre a influência da vinda das nações.
Na era Mosaica, apenas para profetas, sacerdotes e reis era outorgado o dom funcional do Espírito para servir, geralmente no templo (e.g. sacerdotes), ou as vezes em conjunção com o templo (e.g. reis e profetas). Joel e Atos não tem em mente primariamente a função regeneradora do Espírito, mas sim aquela função que iria capacitar as pessoas a servir com várias capacidades. Joel previu um tempo, no entanto, que todos em Israel teriam esse dom. Que Joel 2 e Atos 2 podem ter em mente o dom para servir em conexão de alguma maneira com o novo templo é aparentemente para reconhecer que a profecia de Joel é o desenvolvimento do texto anterior de Nm 11.
Moisés desejava que Deus o ajudasse a “carregar o fardo do povo” que ele estava liderando (Nm 11. 11, 17, Ex. 18.13-27). Deus respondeu dizendo para Moisés reunir “70 homens dos anciãos” e para “trazê-los à tenda da congregação, para assistirem ali contigo” (11.16-17). Moisés obedeceu a Deus: “Ele reuniu 70 homens dos anciãos, e os colocou ao redor da tenda. Então o Senhor desceu na nuvem … e tomou do Espírito que estava sobre Moisés e o pôs sobre aqueles 70 anciãos e quando o Espírito pousou sobre eles, profetizaram” (11.24-25). Então eles pararam de profetizar, mas dois anciãos no local continuaram a profetizar. Quando Josué ouviu isso, pediu para Moisés que eles parassem. Moisés recusou e replicou: “Quem dera que todo o povo de Deus fosse profeta, que o Senhor lhes desse o Seu Espírito!” (11. 26-29).
Portanto, Joel 2 transformou o desejo profético de Moisés em uma profecia formal. Pedro citou a profecia de Joel para mostrar que em seus dias havia finalmente começado o cumprimento no Pentecostes. O dom do Espírito, formalmente limitado a lideres que ajudavam Moisés e comunicando a eles no tabernáculo, foi universalizado para todo o povo de Deus de todas as raças, jovens e velhos, homens e mulheres. Que o dom do Espírito em At 2foi conectado de alguma maneira com o templo está implícito em Nm 11, onde aparece duas vezes que os 70 anciãos receberam o Espírito enquanto eles estavam reunidos ao redor da tenda (i.e. tabernáculo). É fato que em atos as “línguas de fogo … pousaram sobre cada um” e “todos foram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas” (2.3-4, explicado como sendo “profetizar” em 2.17-18), parece ser uma alusão a Números 11.25: “Quando o Espírito pousou sobre eles, eles profetizaram”.
Interessantemente, o judaísmo compara Nm 11 sobre o Espírito em Moisés pousando sobre os anciãos com “uma vela queimando na qual se acendia muitas velas” (Midr. Rab. Nm 15.19). Além do mais, Nm 11.25 diz que Deus “tomou do Espírito que estava sobre ele (Moisés) e colocou sobre os 70 anciãos”. Da mesma maneira, At 2.33 se refere a Jesus como primeiro “tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo” derramou o sobre aqueles em Pentecostes. A esse respeito, Jesus seria a figura de um segundo Moisés.
Até mesmo o profetizar dos setenta em Números 11 pode ter vinculo com as pessoas profetizando em Atos 2. Nós temos visto que alguns comentaristas acreditam que a lista das nações representada em Pentecostes (At 2.9-11) é uma alusão abreviada das setenta nações da terra em Gn 10, e até mesmo pode ser aparente que a narrativa de Atos seja um desenvolvimento posterior da narrativa anterior de Lucas sobre Jesus enviando 70 israelitas escolhidos para simbolizar o inicio do testemunho para as 70 nações do mundo (Lc 10.1-12). Assim o vinculo entre as 70 nações representadas em At 2 e os 70 de Nm 11 talvez não seja coincidência. O judaísmo também combina o texto de Nm 11 com Joel 3.1 para falar sobre as bênçãos “no mundo por vir” (Midr. Sl. 14.6; Midr. Rab. Nm 15.25).
Da mesma maneira, Nm 11. 24-29 é em si mesmo um desenvolvimento alusivo de temas únicos e frases de Êxodo 24 no episódio do Sinai: em ambos os contextos (1) Moisés aponta 70 anciãos (2) como lideres inspirados do povo (3) com o objetivo de ajudar a governar as nações; (4) parte da validação do ofício vem através da visão da descida de Deus em uma nuvem e sua revelação, que eles experimentaram junto com Moisés no sítio sagrado ou santuário; (5) ambas as passagens são precedidas e provocadas pelo pecado de Israel em conexão com reclamações sobre alimento (Ex 16.2; Nm 11.1), o maná diário e a menção da vinda das codornas. Nós não deveríamos estar surpresos em aprender dessa conexão alusiva entre Ex 24 e Nm 11, porque nós temos visto que a teofania do Sinai também é desenvolvida em Jl 2 e At 2. Parece que estamos lidando com fios orgânicos conectados, de um jeito ou de outro, todas essas passagens, e mesmo que tenham vinda para a pena interpretativa de Lucas através de uma tradição exegética anterior ou tenha sido o próprio Lucas quem fizera as conexões não está claro (ainda que nesse caso é como se Lucas estivesse consciente de muito do contexto do AT).
Outra observação sobre a parte final da profecia de Joel é que é um “acumulo” da linguagem de dissolução cósmica do AT. O retrato em Joel faz parte do grupo de textos similares: Is 13.10-13; 24.1-6, 19-23; 34.4; Ez 32.6-8; Jl 2.10, 30-31, 3.15-16 e Hab. 3.6-11. A maioria desses textos são em si retratos nos termos da teofania prototípica do Sinai e evoca lembranças da primeira grande aparição de Deus para Israel. De fato, Joel 2.30-31 (junto com 4.15 [3.15]) é uma das mais claras teofanias escatológicas do tipo do Sinai. Além do mais a ligação entre Joel 2 e o fenômeno no Sinai pode sugerir que a revelação da lei flamejante de Deus mais tarde é interpretada escatológicamente na forma do “derramamento do Espírito”.
A linguagem dessas passagens do AT descreve a destruição do cosmos. Tipicamente, a linguagem é figurativa para se referir ao fim histórico da existência da nações pecaminosas através do julgamento Divino e o dominante emergir do Seu reino vitorioso. Deus executa o julgamento empregando uma nação para derrotar outro em uma guerra. Apesar do tom de julgamento ser dominante, as veze há um aspecto positivo resultando no livramento ou refinamento do remanescente fiel (especialmente quando Israel é o objeto do julgamento). Essa linguagem figurativa ocorre porque os profetas tinham uma concepção literal do fim da história, e eles aplicavam isso metaforicamente para o fim de várias épocas ou reinos durante a era do Antigo Testamento.
A mesma expressão encontrada em Joel 2.10 ocorre novamente em Joel 3.15 que da mesma maneira provavelmente se refere a mesma realidade de Joel 2.31. Em 3.16-18 a aparição do Senhor vem de Sião e é no se “santo monte”, e é inextricavelmente ligado com “a casa do Senhor”. Joel 3 clarifica o que Joel 2 pode já ter implicado duas vez sobre a origem da revelação da destruição cósmica, já que em 3.17 também ocorre em conexão com “Sião meu santo monte”. A ênfase na presença “tabernacular” de Deus no templo no fim de Joel 3 também é expresso através da dupla repetição que “Yahweh tabernacula em Sião (3.17, 21). Novamente, nós temos mais uma indicação de que a revelação teofânica conectada com Joel 2.30-31 vem de ou aparece no templo do fim dos tempos, sugerindo que a teofania em Atos 2 também vem do santuário celestial. Um estudo feito por Craig Evans sugere que o santuário do último capítulo de Joel poderia estar na visão periférica de Lucas (ou Pedro). Ele argumenta que todo o contexto do livro de Joel (incluindo o último capítulo) parece estar na visão periférica de Lucas: em adição a citação de Joel 2 em Atos 2. 17-21, há outras alusões e ecos que vem do livro de Joel que pode ser detectada ao longo de Atos 2. 1-40 (ainda que Evans não mencione a referencia ao santuário de Joel).
Joel 2. 30-32 também indica que não apenas julgamento mas bênçãos resultam da revelação teofânica. Como é tipicamente verdade em outros textos do AT que usam a mesma imagem, a linguagem de destruição cósmica de Joel significa a vida do julgamento, mas também que o remanescente fiel irá sobreviver a esse julgamento. Joel 2.32 diz que “quem invocar o nome do Senhor será salvo”. E como nós temos visto, alguns em Atos 2 respondem com fé em Cristo e são salvos. Esse remanescente fiel é o começo do novo povo de Deus, a continuação do verdadeiro Israel, e como nós temos argumentado, o inicio da forma corporativa do novo templo espiritual. Por outro lado, o fenômeno das línguas, é um sinal de benção, mas também de julgamento, como o é a linguagem de conflagração cósmica de Joel.
Nós temos argumentado de várias perspectivas que Atos 2 representa, não meramente uma teofania, mas também a descida do templo celestial do fim dos tempos, a presença de Deus sobre seu povo terreno. Eles são construídos para serem parte do templo de Deus, não com materiais físicos de construção, mas através de sua inclusão na presença do Seu Espírito. Nosso argumento é cumulativo, de maneira que, enquanto algumas partes da evidencia não são tão fortes como outras, o intento é que o peso geral do propósito seja efetivo. Todas as alusões do AT e relatos paralelos judaicos estão integralmente conectados com a figura do templo, um celestial ou escatológico. Algumas dessas alusões podem coincidir com outras para formar uma figura mosaica, especialmente com respeito a, por exemplo, teofania do Sinai
Neste artigo, pretendo demonstrar qual a natureza e a importância da tipologia dentro da hermenêutica bíblica, e com base nessa definição, explanar brevemente como o dispensacionalismo e a teologia da aliança a usam, evidenciando que é exatamente nessa área onde ambas as escolas erram.
O debate entre o dispensacionalismo e a teologia da aliança é um dos mais acalorados e difíceis. O dispensacionalismo como um movimento teve inicio no século 19 na Inglaterra. Originalmente era associado a nomes como John Darby (1805-1882), Benjamin Newton (1807-1899) e George Muller (1805-1898) e na América do Norte, a nomes como D. L. Moody (1837-1899), J. R. Graves (1820-1893) e C. I. Scofield (1843-1921). A Teologia Sistemática mais extensa dentro do ponto de vista dispensacional são os 8 volumes de Lewis Sperry Chafer.
Dentro do movimento, podemos distinguir entre o dispensacionalismo clássico, modificado e progressivo. Este último tem muitas similaridades com a teologia da aliança, e foi um desenvolvimento para melhor (dentro do dispensacionalismo), e qualquer sistema que deseja corrigir-se pelas Escrituras merece nossa apreciação. No coração do dispensacionalismo está a distinção entre Israel e a igreja, essa é a sine qua non dessa visão.
A teologia da aliança, como um sistema bíblico-teológico tem suas raízes na reforma, com homens como Ulrich Zwinglio (1484-1531), Heinrich Bullinger (1504-1575), João Calvino (1509-1564), e na era pós reforma foi sistematizada por Herman Witsius (1636-1708) e Johannes Cocceius (1603-1669) e foi habilmente representada apresentada na Confissão de Fé de Westminster (1643-1649), bem como em outras confissões reformadas. A teologia da aliança enfatiza a continuidade entre Israel e a igreja, e uma das implicações eclesiológicas disso é a justificativa para o batismo infantil, entendendo o batismo como idêntico a circuncisão do AT.
Os dispensacionalistas e os não-dispensacionalistas (teologia da aliança) concordam em muitas coisas e não deveríamos exagerar nas diferenças. A discordância que sobe ao trono para reger esse debate é sobre a natureza e relação entre Israel e a Igreja. Entretanto, precisamos conhecer a fonte desse embate, e para isso nos voltamos agora para a tipologia.
Primeiramente é de suma importância diferenciar a tipologia da alegoria. A tipologia está fundamentada na história, no texto, no desenvolvimento intertextual, onde várias “pessoas, eventos e instituições” são intencionados por Deus para corresponder com outros[1], enquanto a alegoria não está preocupada com nada disso. Pelo fato de a alegoria não estar embasada na intenção original do autor e nem na intertextualidade, ela necessita de alguma espécie de “intratextualidade” para fundamentar sua explanação. Nas palavras de Kevin Vanhoozer, a interpretação alegórica é representada pela estratégia interpretativa que declara “essa (palavra) significa esse (conceito)”[2] que é determinado por um quadro extratextual.
Mas esse não é o caso da tipologia. Ao analisarmos os seis textos no Novo Testamento que tratam explicitamente da tipologia (Rm 5.14; 1Co 10.6; 1Pe 3.21; Hb 8.5 e 9.24), notamos um padrão que claramente o distingue da alegoria. Mas que padrão é esse? Vamos definir tipologia.
A tipologia como um exercício hermenêutico do Novo Testamento é o estudo da realidade histórico-redentora do Antigo Testamento ou “tipos” (pessoas, eventos e instituições) a qual Deu especialmente designou para corresponder a, e profeticamente prefigurar, seu aspecto antitípico intensificado e cumprido (inaugurado e consumado) na história da salvação no Novo Testamento[3]. Dessa definição, dois pontos precisam ser explanados:
Tipologia está enraizada na realidade histórica e textual. Isso envolve uma relação orgânica entre “pessoas, eventos e instituições” da sua própria época com as épocas posteriores[4]. Horizontes textuais e históricos são vinculados com horizontes posteriores na revelação da redenção. Possui uma conexão orgânica entre as promessas de Deus e seu cumprimento[5].
Tipologia é profética e preditiva. Ainda que tipologia seja diferente de profecia, pois a última é direta enquanto a primeira é indireta[6], é o propósito de Deus que o tipo aponte para além de si mesmo, para seu cumprimento ou “antítipo” em uma época posterior da história da salvação. Por isso, tipologia não é mera analogia, mas são padrões/modelos que se intensificam e apontam para sua suprema culminação em Cristo[7].
Podemos resumir o caráter da tipologia de duas maneiras: Primeiro, envolve uma repetição do padrão “promessa-cumprimento” na história da redenção, onde todos os tipos encontram seu cumprimento em pessoas, eventos e instituições posteriores, mas finalmente todos os tipos são cumpridos em Cristo. E em segundo lugar, a tipologia tem um caráter “a fortiori”, i.e., do menor para o maior (como a exegese rabínica Qal wachomer) onde o tipo apresenta um escala crescente enquanto é cumprido em seu Antítipo na história da redenção. Sendo assim, o antítipo sempre é maior que seu tipo. Por exemplo, Jesus como segundo Adão, Rei Davídico, Filho de Deus, profeta, Sumo Sacerdote, etc, é sempre maior que seus tipos anteriores (respectivamente, Adão, Davi, Israel, os profetas e os sacerdotes).
O sistema teológico dispensacionalista emprega a tipologia, mas nunca de uma maneira preditiva ou profética no que diz respeito à terra prometida e a nação de Israel serem “tipos” de Cristo, aquele que é o “verdadeiro Israel”. Da mesma maneira, a teologia da aliança emprega tipologia, mas nunca em termos do princípio genealógico da aliança abraâmica (o que veremos abaixo). É curioso observarmos como o dispensacionalismo e a teologia da aliança empregam a tipologia em vários lugares e chegam a resultados semelhantes. Por exemplo, ambos concordam que Adão, Moisés, Davi, profetas, sacerdotes e reis apontavam para e foram cumpridos em Cristo. Eles concordam que o sistema sacrificial, o tabernáculo/templo, apontavam para a vinda de Cristo que trouxe seu cumprimento, e o grande evento do Êxodo, que antecipou a grande redenção conquistada por Cristo[8].
No entanto, ambas as visões não empregam a tipologia em áreas que afetam seu sistema teológico, e são nessas áreas que necessitamos ser precisamente bíblicos.
Na teologia dispensacionalista, não se aplica a tipologia para a terra prometida e a nação de Israel, porque segundo eles, essas coisas terão seu cumprimento literal na era milenar. No entanto, a terra prometida era um tipo do Éden e teve seu cumprimento na inauguração da nova criação. Dessa forma, Cristo, o antítipo de Israel, recebe a terra prometida e a leva a seu cumprimento através da inauguração da nova aliança que é organicamente ligada a nova criação[9]. Mas o dispensacionalismo nega que a terra de Israel é um padrão tipológico e nega que Cristo seja o antítipo de Israel.
Como nós vimos acima, o tipo é a sombra e o antítipo é e a realidade e o significado do antítipo sempre excede e ultrapassa o do tipo. No entanto, a visão dispensacionalista rejeita isso, e afirma que os tipos não são necessariamente sombras, e que tanto o tipo como o antítipo devem ter seus significados em seus respectivos contextos enquanto mantem uma relação tipológica entre eles[10].
David Baker afirma que a tipologia não está fundamentada na exegese, e não tem a intenção de apontar para além de si mesmo para sua realidade antitípica, mas se baseia na analogia entre duas pessoas, eventos e instituições os quais são conhecidos apenas retrospectivamente; os tipos não prefiguram algo no futuro se o objeto futuro tiver um significado diferente do contexto original do tipo, e mesmo que o Novo Testamento interpretar o Antigo Testamento tipológicamente, a não ser que o Novo Testamento explicitamente cancele o significado do tipo do Antigo Testamento, o texto do Antigo Testamento ainda tem força[11].
In nuce, Feinberg diz que um entendimento apropriado da tipologia nos informa que mesmo se o NT interpreta o AT tipológicamente, e mesmo que façamos o mesmo, isso não nos permite ignorar ou cancelar o significado do tipo ou substituir o significado do tipo pelo do antítipo… [Tipos] são pessoas, eventos e promessas concretas e históricas. Eles olham para o futuro, mas não de uma maneira que faz seu significado equivalente ao do antítipo… os antítipos do NT nem implícita e nem explicitamente cancela o significado dos tipos do AT[12].
Obviamente discordo do conceito de tipo de Feinberg, o que me leva a uma segunda observação.
Por que Feinberg argumenta dessa maneira? Encontramos a resposta ao longo de toda a discussão sobre o que é essencial na teologia dispensacional, ou seja, a convicção de que a terra prometida para o Israel étnico e Israel como nação não são tipológicos num sentido preditivo onde Cristo como o novo Israel é quem trás com ele o antítipo da terra, que é a nova criação.
Feinberg está persuadido que e adotar esse tipo de visão, irá contra o que ele acredita ser a incondicionalidade da promessa feita a Abraão. Entretanto, através de uma exegese séria das alianças bíblicas, o texto do AT apresenta tanto a terra como a nação como tipos e padrões de algo maior. Na aliança da criação com Adão, o Éden é apresentado como um arquétipo, no qual posteriormente a terra prometida olha para trás mas também olha para frente, para a antecipação e conquista da nova criação. Além do mais, Adão como um “cabeça da aliança” é o tipo do último Adão que viria, e quando nos movemos através das alianças, Adão e o Éden são desenvolvidos em termos de Noé, Abraão e sua semente, a nação de Israel e sua terra, e finalmente no Rei Davídico que governaria sobre toda terra[13]. De fato, enquanto as alianças são reveladas, há evidencias bíblicas para desenvolvimentos intertextuais de todos esses padrões, de maneira que quando a nova aliança é inaugurada pelo último Adão, o verdadeiro Israel, nosso Senhor Jesus Cristo, os tipos, que apontam para além de si mesmos, encontram seu terminus e cumprimento em Cristo e na era da Nova Aliança[14].
Entendo que essa construção da linha histórica da Escritura é mais “bíblica”, uma vez que faz justiça a como as alianças são reveladas e encontram seu telos em Cristo.
Mas e quanto à teologia da aliança? Com relação a seu entendimento da relação entre as alianças, dois pontos irão ilustrar onde discordo.
Primeiro, a visão da teologia da aliança sobre o princípio genealógico está errada. É um erro pensar que o principio genealógico da aliança Abraâmica não é reinterpretado quando nos movemos da promessa para o cumprimento.
Sob as alianças do AT, o principio genealógico, isto é, a relação entre o mediador da aliança e sua semente era física (p. ex. Adão, Noé, Abraão, Davi). No entanto agora, em Cristo e sob Sua mediação, a relação entre Cristo e sua semente não é mais físico, mas é espiritual, o que implica que o sinal da aliança deve ser aplicado somente naqueles que de fato são a semente espiritual de Abraão[15].
Esse é o coração da Nova aliança em Jeremias 31. O Senhor iria se unir com o espiritualmente renovado povo da aliança, aonde todos iriam conhecê-lo, em contraste com a nação mista de Israel que quebrou a aliança. Todas as pessoas da Nova Aliança seriam marcadas pelo conhecimento de Deus, pelo pleno perdão de seus pecados, e pela realidade da circuncisão do coração que iria permitir que eles guardassem a aliança e não quebrá-la.
Em outras palavras, a teologia da aliança falha em perceber a significante progressão das alianças através da história da redenção, particularmente a relação entre o mediador da aliança e sua semente, não percebendo corretamente que o princípio genealógico mudou de Abraão para Cristo, e também a “novidade” da Nova Aliança[16].
A sua ênfase na continuidade da aliança da Graça os levou a não enxergarem as diferenças entre as alianças e a construir erroneamente a natureza da comunidade da Nova Aliança[17].
Em segundo lugar, o coração do problema da teologia da aliança é não ver consistentemente Cristo como o antítipo de Israel. A critica é semelhante a nossa avaliação da teologia dispensacional, mas com razões diferentes[18]. No caso da teologia da aliança, contra a teologia dispensacional, entende que Cristo seja o “verdadeiro Israel”, mas se move muito rápido de Israel para a igreja sem primeiro pensar em como Israel como um tipo nos leva a Cristo, o antítipo, o que acarreta em importantes implicações eclesiológicas[19]. É por esse motivo que a teologia da aliança tem errado em diferenciar os sinais das alianças e suas comunidades.
A melhor maneira de conceber essas relações é notando como, enquanto nos movemos do tipo para o antítipo, dos cabeças das alianças tais como Adão, Noé, Abraão, Moisés/Israel e Davi para Cristo, devemos ver Israel primeiramente em relação a Cristo do que em relação a igreja.
É por isso que, como argumento, é errôneo ver a igreja meramente como uma substituição de Israel, ou algum tipo de “renovação” dele. De alguma maneira, a igreja é nova num sentido histórico-redentor[20].
Por causa da sua identificação com Cristo, que é o antítipo de Israel e o cabeça da nova criação, a igreja é um “novo homem” (Ef 2. 11-22) e sua natureza e estrutura difere da antiga Israel.
Tudo isso é verdade pelo fato de Cristo ter cumprido todas as alianças anteriores, e ter inaugurado uma nova aliança. Nós, o povo da nova aliança, recebemos os benefícios da obra de Cristo somente de uma maneira – através do arrependimento individual para com Deus e da fé no nosso Senhor Jesus Cristo – e através da graça e do poder de Deus, somos transferidos do estado “em Adão” para estarmos “em Cristo”, com todos os benefícios dessa união[21].
Além do mais, o NT é claro: estar em Cristo e ser membro da nova aliança implica uma pessoa regenerada, uma vez que o Novo Testamento não conhece nada parecido com alguém estando em Cristo, sem ter sido chamado eficazmente pelo Pai, nascido do Espírito, justificado, santo e aguardando a glorificação (Ver Rm 8.28-29)
Quando só temos extremos entre continuidade e descontinuidade, condicionalidade e incondicionalidade, identificação total ou distinção total, ao analisarmos as Escrituras como um todo, e como suas partes se relacionam orgânica e progressivamente uma com as outras, optamos por uma via média, ou seja, um meio termo entre essas duas linhas teológicas (não simplesmente para sermos moderados, mas porque acreditamos ser a alternativa “mais” bíblica) . O debate entre a teologia da aliança e o dispensacionalismo está longe de acabar, e espero que com esse breve artigo, nós sejamos desafiados a sermos cada vez mais fiéis as Escrituras, tanto em nosso pensar como em nosso agir, que digamos como Lutero: Nossa consciência está cativa à Palavra de Deus!
[1] Peter Gentry e Stephen Wellum, “Kingdom throught Covenant” (Crossway, 2012), p. 102.
[2] Kevin Vanhoozer, “Is there a meaning on the text?” p. 119.
[3] Essa definição é um sumário da discussão de Richard Davidson, “Tipology in scripture”, pp. 397-408.
[4] Peter Gentry e Stephen Wellum, op. cit., p. 103.
[5][5] Cf. Richard Lints, “Fabric of theology”, p. 304.
[6] Grant Osborne, “A espiral hermenêutica”, p. 102.
[7] Cf. Gentry e Wellum, ibid.
[8] Op. cit. P. 122.
[9] Ibid.
[10] Cf. Feinberg, “Sistem of discontinuity”, p. 78.
[11] Ibid. 77-79; David Baker, “Two Testaments, One Bible”, 169-189.
[12] Ibid.
[13] Cf. Gentry e Wellum, 124.
[14] Ibid.
[15] Ibid.
[16] Ibid. p. 125.
[17] Ibid.
[18] Ibid.
[19] Cf. Ibid.
[20] Ibid.
[21] Ibid.